“Sonhei que saía de outro – povoado de cataclismos e tumultos – e que acordava num cômodo irreconhecível. Clareava: uma difusa luz geral definia o pé da cama de ferro, a cadeira estrita, a porta e a janela fechadas, a mesa em branco. Pensei com medo, onde estou?, e compreendi que não sabia. Pensei, quem sou?, e não pude me reconhecer. O medo cresceu em mim. Pensei: esta vigília desconsolada já é o Inferno, esta vigília sem destino será minha eternidade. Então acordei de verdade: tremendo.”
o flamboyant
Nas noites, Norberto Paso carregava sacos no porto de Buenos Aires.
Nos dias, longe do porto, erguia esta casa. Blanca levantava para ele os tijolos e os baldes de argamassa, e as paredes iam crescendo em torno do quintal de terra.
Esta casa estava a meio fazer quando Blanca trouxe um flamboyant do mercado. Era uma árvore pequenina, ela havia pago um dinheirão, Norberto agarrou os cabelos:
- Você enlouqueceu - disse. E ajudou a plantá-la.
Quando terminaram a casa, Blanca morreu.
Agora se passaram os anos, e Norberto sai pouco. Uma vez por semana, viaja algumas horas até o centro da cidade, se junta a outros velhos que protestam porque a pensão da aposentadoria é uma merda que não dá nem para pagar a corda em que se enforcar.
Quando Norberto regressa, tarde da noite, o flamboyant está esperando.
Eduardo Galeano
Salão de Arte de Mato Grosso do Sul 2010
FCMS inaugura Salão de Arte de Mato Grosso do Sul – 2010 | |||||
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“Corpos em cena” reúne trabalhos de oito artistas em mostra no Museu Hassis
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"assim que encontrei esqueci na calçada", políptico, gravura em metal, aquarela, bordado, desenho, 2009.
Entre os dias 10 e 29 de agosto, será realizada a Mostra “Corpos em cena”, coletiva de oito artistas que - através de objetos, desenhos, pinturas, fotografias e textos – apresentam trabalhos interligados pela problemática do corpo. “Todavia, não se trata da (re-) apresentação do corpo orgânico ou vivente, animado ou inanimado que se encontra disposto no mundo conhecido e circundante, mas de considerar a arte como criação de mundos povoados por criaturas dotadas de um corpo concebido pelo gesto artístico”, diz Rosângela Cherem que, em parceria com Nara Cristina Santos, faz a curadoria da mostra.
A exposição reúne trabalhos de mestres e mestrandos com pesquisa em artes visuais, firmando o início de uma parceria interinstitucional entre o PPGAV/Mestrado em Artes Visuais do Centro de Artes da UDESC (Universidade do Estado de Santa Catarina) e o PPGART/ Mestrado em Artes Visuais da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). A mostra conta com a participação das artistas:Fernanda Trentini, Juliana Crispe, Márcia Souza e Vera Bagatoli da UDESC, Karine Perez, Michele Martines, Milene Tonelloto e Nara Amélia da UFSM.
Curadoras - Profa Dra Rosangela Cherem (PPGAV/UDESC) e Profa Dra Nara Cristina Santos (PPGART/UFSM)
Assistentes curadoria
Karin Orofino (UDESC) e Giovanna Caimiro (UFSM)
Colaboração - Milene Tonellotto
Serviço
Mostra CORPOS EM CENA
Abertura - 10 agosto às 20h - Exposição - 10 a 29 de agosto de 2010
Local - Na Fundação Hassis - Rua Luiz Costa Freysleben,87
Itaguaçu – Florianópolis - Fone 3348-7370
Evento gratuito e aberto ao público
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um cruzamento
“Tenho um animal curioso, metade gatinho, metade cordeiro. É uma herança de meu pai. Em meu poder ele se desenvolveu por completo: antes era mais cordeiro que gato. Agora é meio a meio. Do gato tem a cabeça e as unhas, do cordeiro o tamanho e a forma; de ambos, os olhos, que são esquivos e faiscantes, a pele suave e ajustada ao corpo, os movimentos ao mesmo tempo dançarinos e furtivos. Deitado ao sol, no vão da janela, vira um novelo e ronrona; no campo corre como louco e ninguém o alcança. Foge dos gatos e quer atacar os cordeiros. Nas noites de lua, seu passeio favorito é a canaleta do telhado. Não sabe miar e tem horror de ratos. Passa horas e horas de tocaia diante do galinheiro, mas jamais cometeu um assassinato.
“Alimento-o com leite; é o que lhe cai melhor. Sorve o leite em grandes goles entre seus dentes de animal de rapina. Naturalmente é um grande espetáculo para as crianças. A hora da visita é aos domingos pela manhã. Sento-me com o animal sobre os joelhos, e todas as crianças da vizinhança me rodeiam.
“Formulam-se então as perguntas mais extraordinárias, que nenhum ser humano pode responder: por que existe só um animal assim, por que seu possuidor sou eu e não outro, será que antes já houve um animal semelhante, e o que acontecerá depois de sua morte, será que se sente só, por que não tem filhos, como se chama, etc. Não me dou ao trabalho de responder; limito-me a exibir minha propriedade, sem maiores explicações. Às vezes as crianças trazem gatos; uma vez chegaram a trazer dois cordeiros. Contrariando suas esperanças, não se produziram cenas de reconhecimento. Os animais se olharam com mansidão com seus olhos animais e se aceitaram mutuamente como um fato divino. Sobre meus joelhos, o animal ignora o temor e o impulso de perseguir. Aninhado contra mim, é como melhor se sente. Apega-se à família que o criou. Essa fidelidade não é extraordinária; é o reto instinto de um animal que, embora tenha na Terra inúmeros laços políticos, não tem um único consangüíneo, e para quem o apoio que encontrou em nós é sagrado.
“Às vezes tenho de rir quando ele resfolega ao meu redor, enreda-se nas minhas pernas e não quer se afastar de mim. Como se não lhe bastasse ser gato e cordeiro, também quer ser cachorro. Uma vez – isso acontece com qualquer um – eu não via como sair de dificuldades econômicas, estava a ponto de acabar com tudo. Com essa idéia na cabeça, me embalava na poltrona de meu quarto com o animal sobre os joelhos; tive a idéia de baixar os olhos e vi lágrimas gotejando sobre seus grandes bigodes. Eram dele ou eram minhas? Será que esse gato com alma de cordeiro tem orgulho de um homem? Não herdei muita coisa de meu pai, mas vale a pena cuidar desse legado.
“Tem a inquietude dos dois, do gato e do cordeiro, embora sejam inquietudes muito diferentes. Por isso seu couro o aperta. Às vezes salta para a poltrona, apóia as patas da frente em meu ombro e aproxima o focinho do meu ouvido. É como se falasse comigo, e de fato vira a cabeça e me olha respeitoso para observar o efeito de sua comunicação. Para agradá-lo, faço de conta que entendi e movo a cabeça. Ele salta para o chão e brinca ao meu redor.
“Talvez a faca do açougueiro fosse a redenção para esse animal, mas devo recusá-la porque ele é uma herança. Por isso terá de esperar até que seu alento acabe, embora às vezes me olhe com razoáveis olhos humanos, que me instigam ao ato razoável.”
Franz Kafka
BORGES, Jorge Luis. O livro dos seres imaginários. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. P. 67.