Devo proceder (e assim sempre tenho feito) como se o retrato a óleo fosse a confirmação de uma vida, a sua coroação, o seu triunfo, e por isso mesmo aceitasse a fatalidade de uma rareza resultante do próprio facto comprovado de que o triunfo a raros escolhe. Perguntar seria pôr em dúvida o direito de esses raros a um retrato tão particular , quando tal direito lhes é conferido, em pura lógica, pelo abundante dinheiro com que o pagam e pelos lugares preciosos que escolhem para pendurar o resultado de um trabalho só por eles apreciado consoante a si próprios apreciem. Algumas vezes refleti sobre o cuidado com que se instalam projectores para valorizar os retratos, como pequenos sóis exclusivamente criados para iluminar um só planeta, de um certo ângulo: há uma luz difusa contemplando toda a superfície, mansa luz crepuscular que nada apaga mas nada faz sobressair, e há a luz preferente que nimba os rostos, os faz resplandecer inteiros, à procura de um espírito inexistente ou coberto de camadas intransponíveis pela pintura. Diante de quadros iluminados assim, é de rigor parar, vazios nós de idéias, tanto como de significação a pintura, e tudo participando na mesma cumplicidade, na mesma convivência, na hipocrisia igual. Em ocasiões dessas, envergonho-me verdadeiramente da profissão: viver da mentira, usá-la como verdade e justificá-la com o indiscutível nome de arte, pode-se tornar, em certos momentos, insuportável. P. 48
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